segunda-feira, 27 de agosto de 2018

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Marx sem fronteiras - Artigo publicado na Revista História.com.br da Biblioteca Nacional

Marx sem fronteiras

Teóricos e políticos marxistas ignoraram as ambiguidades do pensador alemão, que não se considerava um economista revolucionário

Jonathan Sperber
1/11/2015
  • A primeira edição de O Capital, de 1867. (Imagem: INSTITUTO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA SOCIAL)
    Quando precisava informar sua ocupação em formulários oficiais, Karl Marx escrevia “doutor em filosofia”, o que não é exatamente uma ocupação. Como não seria a economia. Era como jornalista e editor de jornais que ele ganhava a vida e participava politicamente do mundo. E foi da articulação dessas três áreas que emergiu um pensamento capaz de mudar os rumos da história.

    Seu engajamento político teve início quando era editor da Rheinische Zeitung (a “Gazeta Renana”), em 1842, e chegou ao auge quando editava a sucessora Neue Rheinische Zeitung (“Nova Gazeta Renana”), em 1848, na onda das revoluções liberais, nacionalistas e socialistas desencadeadas em diversos países europeus. Exilado na Inglaterra durante a década de 1850, Marx colaborou com outros periódicos, não só locais, mas também de regiões como Prússia, Áustria e até África do Sul. Escreveu, principalmente, para o New York Tribune, o jornal de maior tiragem do mundo na época. Nos mais de 300 artigos produzidos para o veículo, ensaiou muitas ideias sobre economia e política, como a natureza das sociedades pré-capitalistas e as causas, as formas e o progresso global das crises desse sistema.

    Os escritos de Marx mostram forte influência de seu jornalismo: seus trabalhos mais bem-sucedidos – o Manifesto Comunista, o Dezoito Brumário e A Guerra Civil na França – foram pequenos e em formato jornalístico. Quando tentou trabalhos mais extensos e complexos – como um tratado filosófico que vislumbrou nas décadas de 1840 e 1870, ou seu grande tratado econômico, do qual os três volumes de O Capital são apenas um fragmento – ele não pôde completá-los.

    As bases para o pensamento que ganharia as páginas dos jornais começaram a ser construídas quando era estudante na Universidade de Berlim, entre 1837 e 1841. Marx entrou em contato com ideias do filósofo G.W.F. Hegel através de discípulos como o historiador do Direito Eduard Gans – de quem usaria passagens inteiras no Manifesto Comunista – e o teólogo e filósofo Bruno Bauer, sua mais importante influência intelectual.

    Era através da imprensa que Marx ganhava a vida: aqui alguns periódicos nos quais trabalhou como jornalista (New York Tribune) e editor (Rheinische Zeitung e Neue Rheinische Zeitung). (Imagem: Reprodução)
    Muitas das principais ideias de Marx, como sua compreensão do capitalismo como alienação do trabalho, surgiram da aplicação das teorias de Hegel. Um elemento importante do sistema filosófico hegeliano era o entendimento da filosofia como disciplina intelectual mestra para determinar a validade das percepções empíricas humanas, metodologia de todas as disciplinas científicas e acadêmicas. Marx endossava esta ideia, embora para ele a disciplina mestra fosse uma economia político-filosófica.

    Em meados do século XIX, esta centralidade da filosofia foi fortemente desafiada por uma compreensão das ciências naturais como disciplinas mestras. Seus métodos de observação sistemática, experimento e análise matemática determinavam o verdadeiro valor das percepções humanas e eram vistas como o modelo para todas as disciplinas acadêmicas, incluindo economia, história e até crítica literária. O sociólogo francês Auguste Comte apelidou esta ideia de “positivismo”. A publicação do grande trabalho de Charles Darwin, A origem das espécies, em 1851, deu um poderoso ímpeto a tal concepção, uma vez que suas teorias de seleção natural e de evolução ofereciam um modelo persuasivo de investigação científica, especialmente quando aplicado à história e às sociedades humanas.

    Os seguidores de Hegel viram o positivismo como um grande desafio. Alguns incorporaram as novas ideias, outros se agarraram à primazia da filosofia. O próprio Marx ficou dividido. A pedido de seu discípulo Friedrich Engels, ele leu A origem das espécies e ficou, a princípio, impressionado, considerando o trabalho como a prova científica das suas teorias sociais, uma ideia distintamente positivista. Relendo Darwin, porém, o alemão afirmou que aquela teoria envolvia a percepção de características da economia capitalista, como a competição e a abertura de novos mercados, como leis da natureza – uma crítica filosófica mais hegeliana dos conceitos científicos. Muitos dos escritos posteriores de Marx, como a introdução à Crítica da Economia Política (1859) e o pronunciamento inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores (1864), foram feitos em estilo positivista e apresentam suas visões de capitalismo enquadradas pelas ciências naturais, embora continuasse a exaltar a importância de Hegel para sua teoria econômica.

    Os trabalhos mais bem-sucedidos de Marx, como o Manifesto Comunista (acima, folha manuscrita do original), foram pequenos e em formato jornalístico. (Imagem: INSTITUTO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA SOCIAL, AMSTERDÃ - HOLANDA)
    Após a morte de Marx, em 1883, suas ideias foram popularizadas por Engels, que era bastante positivista. O marxismo dos partidos socialistas e comunistas do século XX, que se apresentava como uma análise científica da história e da sociedade humanas, deveria ser chamado de engelsismo, uma vez que suprimiu os sentimentos ambivalentes de Marx sobre o positivismo.

    Depois de 1945, os trabalhos hegelianos de Marx foram redescobertos e reinterpretados de um modo existencialista. Havia muitas polêmicas sobre o “jovem Marx” e o “velho Marx”, e sobre qual deles era o genuíno. Também se discutia se o marxismo era uma ciência. Essas controvérsias influenciaram o movimento estudantil ao redor do mundo nos anos 1960 e continuam a ser travadas hoje em certos círculos acadêmicos. As ambiguidades do próprio autor sobre os fundamentos da sua filosofia são as bases dessas disputas.

    O Marx economista não seria menos controverso. Quando morava em Paris, entre 1843 e 1845, começou a estudar economia e leu os trabalhos dos clássicos Adam Smith, Jean-Baptiste Say, James e John Stuart Mill. Ficou especialmente impressionado com David Ricardo, a quem louvava como “o economista da era moderna”. Princípios centrais da economia de Marx, como a teoria do valor-trabalho, a tendência à queda da taxa de lucro e a apropriação do lucro excedente pelos proprietários de terras foram todas tomadas diretamente dos escritos de Ricardo.

    Marx se enxergava trabalhando dentro desta tradição da economia ortodoxa do seu tempo. Ele aplicaria os métodos de Hegel à análise dos economistas clássicos e tornaria mais claros os pontos fracos e as contradições dessas teorias. Um exemplo da melhoria nas ideias clássicas foi a distinção que fez entre trabalho e força de trabalho, para lidar com críticas sobre as fraquezas na teoria do valor-trabalho de Ricardo.

    Se era um economista ortodoxo, por que foi percebido como heterodoxo e discordante? Em sua última década de vida, estava em desenvolvimento uma nova versão da economia: a “escola da utilidade marginal”. Seus métodos eram altamente matemáticos e investigavam questões muito diferentes daquelas dos economistas clássicos. Os economistas daquela nova escola, por exemplo, eram particularmente interessados nos mecanismos matemáticos do estabelecimento de equilíbrio de mercado entre oferta e demanda, enquanto seus predecessores clássicos haviam centrado seus estudos nas causas do aumento da riqueza total da sociedade e sua distribuição entre as diferentes classes sociais. Descendente da escola de utilidade marginal, a economia “neoclássica” é hoje considerada ortodoxa, embora seus adeptos quase sempre reivindiquem estar seguindo as ideias de Smith ou Ricardo.

    A mão que vai dominar o mundo, gravura de 1917. Tanto o pensamento filosófico de Marx quanto o econômico são controversos, apesar de eles terem inspirado revoluções mundo afora. (Imagem: Reprodução)
    Versado em teorias econômicas, Marx estava consciente da ascensão da escola da utilidade marginal e estudava cálculo durante a década de 1870 para criticar suas ideias. Mas naquele tempo a saúde já declinava, e ele nunca pôde escrever suas opiniões sobre o assunto. No final do século XIX e início do XX, a escola neoclássica havia se tornado a teoria econômica dominante. Foi justamente nessa época que as ideias marxistas se tornaram conhecidas de um público amplo, com a ascensão do movimento trabalhista socialista e após Engels ter editado e publicado os dois últimos volumes de O Capital, a partir de notas manuscritas de Marx. O marxismo se tornava heterodoxo e discordante.

    Seguindo a eclosão da crise econômica global de 2008, cujos efeitos continuam se fazendo sentir em todo o mundo, renasce o interesse pelas ideias de Marx, inclusive em lugares inesperados: naquele ano, o conservador presidente francês Nicolas Sarkozy foi fotografado lendo um exemplar de O Capital. É justo notar, porém, que muitos dos mais incisivos e conhecidos críticos do atual sistema econômico privatizado, desregulado e globalizado – como Paul Krugman, Joseph Stiglitz e Thomas Piketty – são também adeptos da escola neoclássica, e possuem ideias bem diferentes do marxismo em relação às crises do capitalismo.

    Jonathan Sperber é professor na Universidade de Missouri (EUA) e autor de Karl Marx – Uma vida do século XIX (Amarilys, 2014).

    Saiba Mais

    ENGELS Friedrich & MARX, Karl. Manifesto Comunista. São Paulo: Editora Boitempo, 1998.
    MARX, Karl. O dezoito de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Editora Boitempo, 2011.
    MARX, Karl. A guerra civil na França. São Paulo: Editora Boitempo, 2011.
    MARX, Karl. O Capital. Crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital como um todo. São Paulo: Editora Boitempo, 2013.
    MARX, Karl. O Capital. Crítica da economia política. Livro II: O processo de circulação do capital. São Paulo: Editora Boitempo, 2014.

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terça-feira, 7 de agosto de 2018

Sobre a Modernidade


"A criança vê tudo como novidade; ela sempre está inebriada. Nada se parece tanto com o que chamamos de inspiração quanto a alegria com que a criança absorve a forma e a cor." 

Charles Baudelaire